19 de fev. de 2010

SANTAS ÚLTIMAS CEIAS

Última Ceia de Leonardo da Vinci

Desde há muito tempo, esta imagem é alvo de polêmicas. Lembro-me de, quando criança, a vir na cozinha da minha avó, naqueles moldes em bronze que se compram em lojas paroquiais. Sempre achei que remetesse à ideia de refeição, de um local para almoçar ou jantar, sem nenhum significado a mais. Pra ser sincero, mergulhado em meu mar de ignorância, achava sem graça. Pra quê um bando de gente se juntaria pra comer pão e não beber nada?
Há alguns anos descobri que ela possui inúmeras simbologias tipo "Sagrado Feminino", falo rudimentar e o Cristo humano e amante. Mas é apenas uma pintura? Não estarão forçando a barra? Será que o Da Vinci escreveu tudo isso? Minhas dúvidas me divertem.
O que intriga e impressiona, são as várias interpretações dessa pintura. Incrível é a divertida versão que representa um grupo de amigos em uma conversa na padaria. Todos bem humanos, com suas conversas truncadas e de duplo significado. Ainda dói o quê? Jesus não multiplica apenas pães, mas também quindins e talvez brigadeiros.
       



Versões de cartoons em seus ambientes de convivência são comuns. Homer Jesus Simpson brindando com cerveja e Cristo Mickey regendo um bando patetas são versões interessantes, mas não mais que engraçadas. O balcão do bar do Moe é a mesa da Santa Ceia. Seria o balofo do Barney a Maria Madalena? Aonde Disney estava com a cabeça ao transfomar um rato em uma figura bíblica? Deve ter consumido um caminhão de entorpecentes. 

Seriados de televisão e filmes já usaram cenas aludindo a esta imagem. Fotografaram seus personagens em determinadas posições apenas fazendo referência à sua importância no contexto ou, às vezes, nem isso. Se bobear, fica até difícil definir quem são ou de onde vêm, caso não haja legenda. Isso sim é um sacrilégio publicitário. O doutor insano de House ceou numa mesa cirúrgica tendo um moribundo como refeição. Vestidinho vermelho provocante em meio a um monte de gente de preto com cara de paisagem, foi o clichê chamariz pra divulgação de Battlestar Gallactica.                                                 
Gosto demais das reinterpretações, o povo viaja mesmo. Arte ou não, o objetivo sempre é chocar. Veja o exemplo recentíssimo do Fernando Bayona. Fotografou a sequência da "Vida e Morte de Jesus Cristo" em situações que remetem a prostituição e homoerotismo. Um personal Jesus popstar democrático desvairado, dá até pra musicar a cena com a melodia sexychic do Depeche Mode. Era previsível que a sua exposição, mais que apropriadamente batizada de "Circus Christi", fosse cancelada em sua primeira semana na Espanha.
         
Tenho as minhas próprias interpretações dessa fatídica "Última Ceia". São bem apropriadas as versões contemporâneas dos diversos novos nichos socias. Como a ceia de calorias vazias das virtuosas balzaquianas boêmias de "Sex and the City" com suas taças de dry martini sem azeitona por favor. E a minha disparadamente preferida é a ceia do eu comigo mesmo e meu cão amigo, a representação clássica de "quanto mais conheço os humanos, mais amo meus cães", até como com (ou como) eles. Segura e agradabilíssima.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
        
         
E para finalizar, as versões extremas políticosociopatológicas completam a obra do acervo de aberrações da raça humana. As ninfetas esquálidas  e suas quase ceias semanais de água e melancia nas campanhas publicitárias que promovem não se sabe o quê. Os obesos de vácuo interno infinito, filhos de pais cegos, em suas mega ceias repetidas diárias, com milhares de calorias acumuladas num estoque pro fim dos tempos. E aqueles, também esquálidos, esquecidos e esqueléticos, num número de 1,02 bilhão, que vêem numa melancia com água um banquete, mas que nunca tiveram verdadeiramente a sua ceia, nem sabem o que isso significa e provavelmente jamais saberão. 
Então Senhor, rogai por nós humanos pecadores glutões ou anoréticos, agora e na hora de nossa última ceia. Amém!
 
 
  

6 de fev. de 2010

X-RATED

Uma gota de suor, uma gota gelada que escorre pela espinha.  Um suspiro profundo e outros curtos, um sussurro ursino incompreensível.
Ode ao ridículo, a simetria, ao furor e ao comodismo insuportavelmente insaciável. Qualquer coisa. Belas formas redondas, encharcadas de uma adiposidade acumulada há eras. A esqualidez e a anencefalia. Ode a seletivade rapidamente correspondida.
Reservo aos sorrisos apaixonados, aos olhares profundos e contemplativos, e às palavras doces escritas por entre dentes brancos, um belo e nebuloso travesseiro suado e sufocante.
Nada mais que a lascívia pura e tenra, um desejo instintivo e invariavelmente prazeroso. Nada mais. Somente o gozo e a despedida, um banho rápido e depois de um copo de água gelado goela abaixo, dormir profunda e relaxadamente numa cama só minha.
Um monte de frases chulas, ditas em verborréia convulsiva de uma segunda personalidade, em substituição aos discursos de admiração, às promessas impossíveis e ao sensacionalismo amoroso usual putridamente nauseabundo.
Uma deliciosa pornografia sentimental. Já consultei doutores, oráculos e marcianos, é um vício incurável. Por isso mergulho a fundo no processo de caça, conquista e alívio. Cão e cavalo, eu sei, mas pelo menos não acumulo testosterona. Dizem que o excesso faz mal, o resto é impublicável.

2 de fev. de 2010

IMIGRANTE


É tão diverso que, de cansaço, nem sei mais a que recorrer.
As sutilezas são traiçoeiras, tão plurais quanto um poema.
Os nossos cotidianos paradoxos irritantes e permitidos.
Um ser imigrante, em fuga de um velho passado doente.
Uma pútrida masmorra do fantasma de um marionete.
E se falta lhe faço, e se tanta falta sente, não fujas mais de mim.
Não deixe para o leito de morte o que pode fazer agora.

A PARTIDA DE GUDE, O PUDIM E A MULA PRETA


Pintura: Site Google - Partida de Gude (autor desconhecido)


Era novo ainda o menino da fazenda da porteira quando o conheci. Bem me lembro que ele se divertia absurdamente com a "mula preta com sete palmos de altura" que seu pai lhe cantarolava, mas o que mais gostava era o pudim de leite condensado que sua mãe lhe fazia. Achava pouco uma travessa inteira, e como sentia que tinha que dividir, nunca se satisfazia e nem conseguia um travessa só sua.
Certa vez, resolveu roubar carambolas de seu próprio quintal subindo pelo muro do vizinho. De lá de cima mesmo, jogava os frutos pros amigos da rua e era ovacionado. Só que sua alegria acabou quando seu pai lhe descobriu e deu uns bons safanões. Ficou de castigo um tempão.
Era um menino bem desastrado, chutava pedras em vez de bolas.  Uma vez, montado num cavalo esfolou a barriga pois não conseguiu fazer o bicho se desviar de um galho perpendicular ao tronco. Mas no final era tudo muito divertido.
Era resmungão quando faziam barulho enquanto pescava e quando tinha que limpar as gaiolas dos canários. Dava uns socos quando lhe passavam dos limites, mas eram momentos raros estes.
De fato era um bom filho, era mesmo, sempre foi. Obediente, estudioso, como haviam planejado mesmo.
Depois de anos sumido, vi dia desses o menino, estava em outras paragens. A mesma coisa, nem um fio de cabelo mudara. Vi de longe, quase que passou por mim desapercebido, não fosse um golpe de pescoço que me deram para notá-lo.
Veio ao meu encontro, abraçamo-nos como velhos amigos que somos, foi bom revê-lo, lembrar das coisas boas. Soube que estava meio ressabiado, pouco até arredio, acho que se assustou com a gente muda da cidade grande, estranhava que nem comiam carambola.
Ainda se engraçava com a tal da mula preta e agora se deliciava com uma travessa inteira de pudim de leite condensado da padaria da esquina. E uma coisa eu notei, o menino está com cara de mais feliz, um sorriso genuíno, seu mesmo. Falou que tem grandes amigos, não aquele montão de antes, e se orgulhava pois nem precisou lhes conquistar com carambolas.
Certa hora ele me falou alguma coisa, mas não entendia de jeito nenhum. E o menino insistia, gritava, mas era eu que não ouvia mesmo. Passou um monte de cavalos seguidos por uns vinte cães ruidosos, logo após um caminhão cegonha.
O menino inusitadamente estava me convidando pra jogar bolinha de gude ali mesmo, e que se eu não aceitasse, eu não dormiria a noite de remorso por ter-lhe negado uma partida. Agradei demais daquilo, só que perdi na certa, mas o menino nem era muito melhor que eu.
Despedimo-nos, certos de que iríamos nos rever com a frequência necessária para manter acesa nossa amizade.
Noite passada tinha dormido mal por causa do calor, mas depois da partida de gude me senti tão leve, que hoje dormirei melhor. Fiquei triste por termos perdido o contato esse tempo todo, mas felizmente eu o reencontrei e seremos novamente grandes amigos. Espero que, depois disso, sempre que o menino falar, ele seja ouvido e não precise mais gritar.

Gritos surdos traduzem os desejos mais urgentes.