31 de dez. de 2010

Hoje fui acordado pelo telefone bem cedinho, número de família e logo pensei, lá vem notícia ruim. Ninguém liga uma hora dessas pra papear! Mas graças ao meu bom Deus, não era nada demais, nem nada que justificasse uma ligação tão cedo assim.
E como, pra variar, o sono se foi e a escrita me acalma, vim aqui pra me despedir de 2010.
Saldo positivíssimo. Muito a agradecer sempre.
Um ano de consolidações, de reconhecimento, de reaproximações, de grandes momentos, mas também de longas noites insones.
Um ano marcado pela saudade, saudade de quem se foi pra sempre e que deixa aquela dor funda e surda no peito, saudade de quem está lá do outro lado do mundo e a velha saudade de quem nem apareceu ainda.

Ficam então os desejos de um 2011 de paz, de crescimento, de saúde, de força e de muita felicidade.
Um magnífico 2011 a todos!

LIÇÃO DE CAFA



Vamos lá, sem rodeios.
Confessa que é safado, devasso, mundano e que enfia a cara na cachaça. Faz cara de paisagem, de intelectual no canto só escolhendo a caça. Sente o cheiro, dá o bote, come e joga os restos pra reciclagem. Faz muita sacanagem. 
Dorme rodando numa embriaguês vertiginosa infinita e acorda com uma cabeça de cem quilos. Dá uma de égua, finge que não lhe é. Toma um banho gelado, um analgésico e um antiácido, com umas cinco doses de café e pronto prá outra, escapa.
Talvez tenha sido aquela pessoa que viu ao acordar e de quem nem sabia o nome, que roubou sua cueca pra fazer pano de prato.
Uma vida cansada, boa demais, mas que assusta. Tem gente que vai e que arrisca, tem gente que provoca e nem petisca. Sem neuras, sem fumaça, sem pára raios. Faz outra cara para melhor impacto, age dentro do bom gosto. Ganha o seu muito obrigado e seduz a quem lhe interessa. Ah safado!
Será que você aguenta seu cafa?
Aguenta, seu charme lhe move, seu espelho lhe nutre. E se safa da cruel verdade, que na verdade nem é tão cruel assim, e quiçá nem tão verdade. O que seria da vida e da hipocrisia, se não disséssemos que a verdade fere. 
Fuja da fama de sem vergonha, trabalhe. Diz que está exausto no fim do dia. Diz que é workaholic e que adora a família, que quer ter um filho, que luta por um mundo melhor e se safa seu cafa! Amacie a presa.
Durma sossegado, pois pra cada safado sempre há uma devassa, e esse fogo nem bombeiro apaga. Graças a Deus.
E vai de safado, de cafa e se safa com sua caça, aceleradamente e inexoravelmente, porque a vida passa.

20 de dez. de 2010

UMA CRÔNICA DA BOCA PEQUENA

Ouço um ritmo eletrônico qualquer de alta rotação. Aumento o volume. Abro a janela, inspiro profundamente o ar da noite, encho o meu pulmão do monóxido de carbono inebriante. Aumento mais e foda-se o vizinho.
Relembro do meu desdém por gente e do paradoxo de minha plena insuficiência afetiva. Nem é desdém na verdade, é que sempre me dou tão mal, que acabo maldizendo mesmo, é a boca pequena.
Foram tantos os casos malfadados, que realmente questiono se tudo não passou de perda de tempo, na verdade o que aprendi foi a quem devo sempre evitar. Nas pérolas em que muitos porcos chafurdaram, ou seria eu o porco?
É o meu dedinho podre, meu imã pra chaves de cadeia, meu currículo negro manchado raramente de branco. Seria eu um melancólico, dramático, filho de uma puta (tadinha da puta), carente de atenção e inseguro? Chato com pose de bonzão, ou um não chato bonzão mesmo?
E tem um vazio grande aqui sem explicação, o que é pior ainda. 
É uma raiva nem sei de quê ou de quem, mas que se me fosse permitido, esbofeteava o primeiro que fizesse hora com minha cara. Minha cabeça anda nos tempos do Mad Max, cujo ator principal é o Brinquedo Assassino. Sorte do mundo que isso fica preso na minha cabeça.
Do outro lado da bipolaridade, há uma felicidade simultânea. A felicidade dos fatos, do que é palpável e do futuro.
Eu sei que eu rio disso tudo agora. E não é pra rir mesmo? É um vazio que não tem explicação e muito menos motivo. É frescura mesmo, tô precisando é de um couro bem dado e como diz minha sábia mãe, é muita falta de uma trouxa de roupa bem suja pra lavar.
É bem mais divertido me ridicularizar que tentar entender este mundo cão.
Vamos vivendo.

7 de dez. de 2010

É O QUE FICA...

Um susto, uma notícia que jamais queria ter recebido.
Sem se despedir, você se foi.
Sem ação, sem reação, sem pensar, sem estar.
O que fica é o choro e a saudade imensa.
O que fica é a sensação indefinível de não lhe ter mais.
O que fica é o luto até não sei quando.
Do seu sorriso, do seu gênio forte, de sua intransigência.
O que fica são as felizes lembranças.
(Do colégio, da dancinha coreografada no amigo oculto, da manhã de meia na escola, da carona na carroça,
da expulsão coletiva na aula de química, do teatro).
O que fica entre nós são nossas confidências.
O que fica são nossos amigos, nossos irmãos e nossas histórias eternas.
É tudo isso que fica, pra sempre e no coração.
É o que fica sem você.

Para a nossa amiga!

30 de nov. de 2010

TRINTA SEGUNDOS

Foram trinta segundos que pareciam uma eternidade,
nem a menina dos céus me valeu de alguma coisa.
De uma relativa calmaria e o alívio de estar chegando,
a uma trepidação súbita e um ruído ensurdecedor.
...
Nunca vi isso meu Pai.
...
Enraizei na cadeira.
Do lado de fora, somente relâmpagos e nimbus.
A altitude se reduzia rápido, o aperte o cintos se acendeu.
E a voz a avisar, área breve de instabilidade.
...
Instabilidade o cacete, estamos é caindo.
E a cair estavam as revistas e algumas garrafas.
Tripulação, pouso autorizado...aonde?
Enquanto isso minhas tripas reviravam e quase virei do avesso.
...
Não quero sentir dor.
...
Lembrei dos amigos que viajaram comigo, dos vexames.
Da sudorese nas mãos, quando não consegui abrir o maravilhoso "mix nuts".
"Mamãe, por que o moço treme tanto?"
Dois litros de rivotril placebão no capricho e uma Xingu gelada.
...
Não me lembro do que mais pensei.
Pqp, Jesus nos acuda.
E o outro, "estamos caindo mesmo?".
Nada, era realmente uma nuvem de chuva.
Cheguei inteiro, assumo minha trajicomédia aeroviária.
Tu és um cagão mesmo hein rapaz.

29 de out. de 2010

URSO POLAR - A MISSÃO

O velho urso polar, ser naturalmente cordial, mas conhecedor dos mais diversos venenos e portador de uma cegueira seletiva ocasional e recorrente, ultimamente anda preocupado com sua atrofia cerebral.
Acamodou-se após comprar um tubo de pasta de dentes pra evitar a halitose caso o apocalipse chegasse. Entediadíssimo, voltou a se irritar com o grasnido reverberante dos animais com quem era obrigado a conviver. Sua frustração o fez abusar da cafeína e dos calmantes. A impaciência fusilava o que estivesse no seu campo visual.
Atinou-se, estaria caducando?
Próximo dos enta, pupilo de Balzac como sempre se orgulhava em dizer, temia neuropatias degenerativas e cefaléias hidrocefálicas normotensivas. É uma pena não ser burro, assim não sofreria tanto.
Quase sem direção, jogou xadrez e sudoku e abusou de antioxidantes. Seu oráculo lhe dissera fazer bem. Desisitu no meio do caminho, como o fez com o Mundo de Sofia, só que na página 35. 
Eita Pai do céu, ai mãe natureza, o que se há por fazer? Senhor urso queria ser inteligente o suficiente pra saber. Na última vez, um tubo de pastas de dentes resolveu.
Lança chamas? Um super truck? Gás mostarda? Até riu de tão absurdos.
...
Por fim, assumiu sua loucura, comprou um par de tênis, uma revista de futilidades e um GPS e sentou no banco da praça. Esperava apenas que não fosse notado e levado pela primeira carrocinha que surgisse.
...
E que Deus me livre de tanta asneira!

23 de out. de 2010

FUTURO DO PRESENTE

Redimo-me já, pois não resta vivalma. Sigo vivendo sem pausas, com a intenção de ser sempre intenso, como se o fim se aproximasse a cada dia. Transcrevo desejos e admito a sua simplicidade complexa.

Quero continuar até o fim dos dias a ter o mesmo amor no trabalho. Não que eu queira morrer trabalhando, mas que pelo menos este não me seja tedioso. Quero curtir os louros sempre. Quero ter tranqüilidade em pedir e ter colo novamente, a ser a criança grande e aguda, mas o filho como sempre foi. Quero tanto!

Um dia, que Deus me ouça rápido, desejo ser esperado na porta, com um oi saudoso e um forte abraço ao entrar. Dividirei problemas e contas, assumirei as rotinas e serei o rei mais feliz do mundo. Verei caras sombrias e sentirei apertos angustiados no peito, mas estarei calmo e certo de que eles vêm e vão sempre. Só não quero pisar em ovos.

Terei um cachorro e espaço pra que ele não se sinta claustrofóbico, numa casa com sacada, grandes janelas de vidro que emolduram um pôr do sol ou uma desarmônica selva de concreto. Terei vizinhos com calçados de solas de borracha e controladores de volume vocais. Andarei na minha bicicleta e nadarei todos os dias.

Serei mais altruísta e, mesmo que absurdos, quero filhos. Ainda tenho motivos pra acreditar que são grandes possibilidades de agradáveis companhias e de doces surpresas, e remotamente talvez, quem sabe, a garantia de um futuro longe do mais completo abandono.

Lista de presentes!

19 de out. de 2010

pH 6

Pirralho de uma figa, faz-me raiva novamente, que lhe corto a mesada. Lave as mãos antes de comer, limpe a titica preta sob as unhas. Tire o fone do ouvido e compadeça-se de seus dias.
Desacredite de que sempre será a primeira vez, e de que toda primeira vez será pra sempre.
Incentive a insônia por temer que o tempo voa ao dormir. Sua dor no peito, pode não ser apenas pela bolada do futebol ou pelo soco do recreio. Faça planos, incluindo um de saúde.
Suas poluções, são as incontinências. Ah símio vil descascador de bananas.
Não queira mais ter a razão. Assumir a culpa acalma a fúria. Analise, critique, nunca seja impulsivo. Beba, coma e aja com moderação. Se emburreceres, que fique sem movimentos nas mãos, fique mudo ou pelo menos finja-se de morto.
Sua mãe tinha razão quando lhe dizia pra nunca aceitar nada de estranhos. Com o dinheiro da mesada, compre ou crie seus próprios conselhos.
Cale-se, tenha audição seletiva e modos polidos. Obedeça os mais velhos, mas dê um soco quando a razão sumir. Peça de dia das crianças um lança chamas da Glaslite e um Aquaplay pra apagar o incêncio. E quando o saco encher, Pense Bem e suma no seu Pogobol.

29 de jul. de 2010

VELHA AMIGA

Quando tudo estava no mais completo sossego e o futuro certamente perfeito, você me aparece. Agora somente pra relembrar da minha ínfima condição humana. Foram relembranças e lamúrias mil, quilos de recibos e tardes de segunda a fio.
Você não me deixa.
Nunca me deixarás. Será?
Ah poeta insano e de pretensioso muito tenho se me autodenominar assim. Relembrei-me como sou e o que anseio. Doçura, clareza e desejo, aos montes. Gravações, em cada uma, um desejo de ser único, marcante, inesquecível.
Será que vou dessa vez?
Será?
Apenas diga sim, é como deveria ser. Mas você me faz querer mais além de um sim. Simples sim, simpatia, simbiose, símios. O sim é um mero prefixo, combinação. Sim simplesmente, sim puramente.
Quero que o mundo pare.
Que tudo dê certo.
Sinto uma dor e uma náusea, tenho medo de que o fim chegue, que eu não chegue até o fim. O coração palpita, galopa e titubeia. Temo que este seja um poema de despedida, que eu não volte mais e que tudo se perca.
Temo não chegar até o fim.
Velha amiga, só eu sei.

19 de fev. de 2010

SANTAS ÚLTIMAS CEIAS

Última Ceia de Leonardo da Vinci

Desde há muito tempo, esta imagem é alvo de polêmicas. Lembro-me de, quando criança, a vir na cozinha da minha avó, naqueles moldes em bronze que se compram em lojas paroquiais. Sempre achei que remetesse à ideia de refeição, de um local para almoçar ou jantar, sem nenhum significado a mais. Pra ser sincero, mergulhado em meu mar de ignorância, achava sem graça. Pra quê um bando de gente se juntaria pra comer pão e não beber nada?
Há alguns anos descobri que ela possui inúmeras simbologias tipo "Sagrado Feminino", falo rudimentar e o Cristo humano e amante. Mas é apenas uma pintura? Não estarão forçando a barra? Será que o Da Vinci escreveu tudo isso? Minhas dúvidas me divertem.
O que intriga e impressiona, são as várias interpretações dessa pintura. Incrível é a divertida versão que representa um grupo de amigos em uma conversa na padaria. Todos bem humanos, com suas conversas truncadas e de duplo significado. Ainda dói o quê? Jesus não multiplica apenas pães, mas também quindins e talvez brigadeiros.
       



Versões de cartoons em seus ambientes de convivência são comuns. Homer Jesus Simpson brindando com cerveja e Cristo Mickey regendo um bando patetas são versões interessantes, mas não mais que engraçadas. O balcão do bar do Moe é a mesa da Santa Ceia. Seria o balofo do Barney a Maria Madalena? Aonde Disney estava com a cabeça ao transfomar um rato em uma figura bíblica? Deve ter consumido um caminhão de entorpecentes. 

Seriados de televisão e filmes já usaram cenas aludindo a esta imagem. Fotografaram seus personagens em determinadas posições apenas fazendo referência à sua importância no contexto ou, às vezes, nem isso. Se bobear, fica até difícil definir quem são ou de onde vêm, caso não haja legenda. Isso sim é um sacrilégio publicitário. O doutor insano de House ceou numa mesa cirúrgica tendo um moribundo como refeição. Vestidinho vermelho provocante em meio a um monte de gente de preto com cara de paisagem, foi o clichê chamariz pra divulgação de Battlestar Gallactica.                                                 
Gosto demais das reinterpretações, o povo viaja mesmo. Arte ou não, o objetivo sempre é chocar. Veja o exemplo recentíssimo do Fernando Bayona. Fotografou a sequência da "Vida e Morte de Jesus Cristo" em situações que remetem a prostituição e homoerotismo. Um personal Jesus popstar democrático desvairado, dá até pra musicar a cena com a melodia sexychic do Depeche Mode. Era previsível que a sua exposição, mais que apropriadamente batizada de "Circus Christi", fosse cancelada em sua primeira semana na Espanha.
         
Tenho as minhas próprias interpretações dessa fatídica "Última Ceia". São bem apropriadas as versões contemporâneas dos diversos novos nichos socias. Como a ceia de calorias vazias das virtuosas balzaquianas boêmias de "Sex and the City" com suas taças de dry martini sem azeitona por favor. E a minha disparadamente preferida é a ceia do eu comigo mesmo e meu cão amigo, a representação clássica de "quanto mais conheço os humanos, mais amo meus cães", até como com (ou como) eles. Segura e agradabilíssima.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
        
         
E para finalizar, as versões extremas políticosociopatológicas completam a obra do acervo de aberrações da raça humana. As ninfetas esquálidas  e suas quase ceias semanais de água e melancia nas campanhas publicitárias que promovem não se sabe o quê. Os obesos de vácuo interno infinito, filhos de pais cegos, em suas mega ceias repetidas diárias, com milhares de calorias acumuladas num estoque pro fim dos tempos. E aqueles, também esquálidos, esquecidos e esqueléticos, num número de 1,02 bilhão, que vêem numa melancia com água um banquete, mas que nunca tiveram verdadeiramente a sua ceia, nem sabem o que isso significa e provavelmente jamais saberão. 
Então Senhor, rogai por nós humanos pecadores glutões ou anoréticos, agora e na hora de nossa última ceia. Amém!
 
 
  

6 de fev. de 2010

X-RATED

Uma gota de suor, uma gota gelada que escorre pela espinha.  Um suspiro profundo e outros curtos, um sussurro ursino incompreensível.
Ode ao ridículo, a simetria, ao furor e ao comodismo insuportavelmente insaciável. Qualquer coisa. Belas formas redondas, encharcadas de uma adiposidade acumulada há eras. A esqualidez e a anencefalia. Ode a seletivade rapidamente correspondida.
Reservo aos sorrisos apaixonados, aos olhares profundos e contemplativos, e às palavras doces escritas por entre dentes brancos, um belo e nebuloso travesseiro suado e sufocante.
Nada mais que a lascívia pura e tenra, um desejo instintivo e invariavelmente prazeroso. Nada mais. Somente o gozo e a despedida, um banho rápido e depois de um copo de água gelado goela abaixo, dormir profunda e relaxadamente numa cama só minha.
Um monte de frases chulas, ditas em verborréia convulsiva de uma segunda personalidade, em substituição aos discursos de admiração, às promessas impossíveis e ao sensacionalismo amoroso usual putridamente nauseabundo.
Uma deliciosa pornografia sentimental. Já consultei doutores, oráculos e marcianos, é um vício incurável. Por isso mergulho a fundo no processo de caça, conquista e alívio. Cão e cavalo, eu sei, mas pelo menos não acumulo testosterona. Dizem que o excesso faz mal, o resto é impublicável.

2 de fev. de 2010

IMIGRANTE


É tão diverso que, de cansaço, nem sei mais a que recorrer.
As sutilezas são traiçoeiras, tão plurais quanto um poema.
Os nossos cotidianos paradoxos irritantes e permitidos.
Um ser imigrante, em fuga de um velho passado doente.
Uma pútrida masmorra do fantasma de um marionete.
E se falta lhe faço, e se tanta falta sente, não fujas mais de mim.
Não deixe para o leito de morte o que pode fazer agora.

A PARTIDA DE GUDE, O PUDIM E A MULA PRETA


Pintura: Site Google - Partida de Gude (autor desconhecido)


Era novo ainda o menino da fazenda da porteira quando o conheci. Bem me lembro que ele se divertia absurdamente com a "mula preta com sete palmos de altura" que seu pai lhe cantarolava, mas o que mais gostava era o pudim de leite condensado que sua mãe lhe fazia. Achava pouco uma travessa inteira, e como sentia que tinha que dividir, nunca se satisfazia e nem conseguia um travessa só sua.
Certa vez, resolveu roubar carambolas de seu próprio quintal subindo pelo muro do vizinho. De lá de cima mesmo, jogava os frutos pros amigos da rua e era ovacionado. Só que sua alegria acabou quando seu pai lhe descobriu e deu uns bons safanões. Ficou de castigo um tempão.
Era um menino bem desastrado, chutava pedras em vez de bolas.  Uma vez, montado num cavalo esfolou a barriga pois não conseguiu fazer o bicho se desviar de um galho perpendicular ao tronco. Mas no final era tudo muito divertido.
Era resmungão quando faziam barulho enquanto pescava e quando tinha que limpar as gaiolas dos canários. Dava uns socos quando lhe passavam dos limites, mas eram momentos raros estes.
De fato era um bom filho, era mesmo, sempre foi. Obediente, estudioso, como haviam planejado mesmo.
Depois de anos sumido, vi dia desses o menino, estava em outras paragens. A mesma coisa, nem um fio de cabelo mudara. Vi de longe, quase que passou por mim desapercebido, não fosse um golpe de pescoço que me deram para notá-lo.
Veio ao meu encontro, abraçamo-nos como velhos amigos que somos, foi bom revê-lo, lembrar das coisas boas. Soube que estava meio ressabiado, pouco até arredio, acho que se assustou com a gente muda da cidade grande, estranhava que nem comiam carambola.
Ainda se engraçava com a tal da mula preta e agora se deliciava com uma travessa inteira de pudim de leite condensado da padaria da esquina. E uma coisa eu notei, o menino está com cara de mais feliz, um sorriso genuíno, seu mesmo. Falou que tem grandes amigos, não aquele montão de antes, e se orgulhava pois nem precisou lhes conquistar com carambolas.
Certa hora ele me falou alguma coisa, mas não entendia de jeito nenhum. E o menino insistia, gritava, mas era eu que não ouvia mesmo. Passou um monte de cavalos seguidos por uns vinte cães ruidosos, logo após um caminhão cegonha.
O menino inusitadamente estava me convidando pra jogar bolinha de gude ali mesmo, e que se eu não aceitasse, eu não dormiria a noite de remorso por ter-lhe negado uma partida. Agradei demais daquilo, só que perdi na certa, mas o menino nem era muito melhor que eu.
Despedimo-nos, certos de que iríamos nos rever com a frequência necessária para manter acesa nossa amizade.
Noite passada tinha dormido mal por causa do calor, mas depois da partida de gude me senti tão leve, que hoje dormirei melhor. Fiquei triste por termos perdido o contato esse tempo todo, mas felizmente eu o reencontrei e seremos novamente grandes amigos. Espero que, depois disso, sempre que o menino falar, ele seja ouvido e não precise mais gritar.

Gritos surdos traduzem os desejos mais urgentes.