28 de fev. de 2008

UM ESTRANHO NO NINHO

FOTO: Site Gold and Science - Berçário de Estrelas

Há certos momentos na vida em que fraquejamos e só queremos sumir e encontrar um lugar pra reenergizar.
Há pouco me ocorreu um destes momentos. Quase meia noite e um cansaço inexplicável me dominou sem motivo algum. Era um desânimo, uma incapacidade de enxergar a bondade do próximo minuto.
Entrei no elevador. Queria subir pra me deitar e, no entanto, desci. Saí no térreo e despretensiosamente tinha a intenção de tomar um gole de ar pra aliviar a sede do meu sufoco. Mais um daqueles incontáveis momentos de angústia já ocorridos outrora.
Era noite fresca, de brisa leve e agradável. No caminho uma velha senhora me abordou. Perguntou-me se queria conhecer um novo lugar, prometera que lá me sentiria renovado. Já o conhecia na verdade, mas aceitei de bom grado o convite tão amistoso.
Quando entrei, quase dei meia volta. Decibéis e mais decibéis de choro insistente dos recém chegados. Era uma algazarra irritante. Desafiei a minha irritação e adentrei-me. Era uma sala grande e verde. Havia vários pequenos berços de acrílico, dentro de todos eles havia um ser pequenino.
Lindos e horrendos, uns dormiam profundamente, outros se remexiam e choramingavam por algo, leite ou afago, não soube definir. Deu uma vontade imensa de pegar um no colo, mas a fragilidade era grande - deles ou minha?
Um me chamou a atenção, estava num canto. Era uma menina de choro alto e estridente. Tinha uma carinha amassada, narizinho de batata e bochechas rosadas, o tipo preferido de propaganda de margarina. Cheguei bem perto, e com um cuidado inimaginável, infantilizei bem a voz e como nunca havia feito, comecei a ninar a figura. Cantei uma música que acabara de inventar.
Para minha grata e feliz surpresa, ela sossegou instantaneamente. Alguns comentários do tipo, “é... já pode ser pai", foram ditos naquela hora. Pensei com um sorriso de canto de boca, por enquanto ainda prefiro os cachorros que não tenho.
Mas, naquela hora, os bebês me acalentaram, deram-me a energia que buscava. Muita coisa muda em raros e puros momentos desse tipo. Senti algo bom, parecia até cena de filme, os olhos marejaram de contentamento sem causa definida.
Acho que não foi vontade paterna, não mesmo. Sei que pelo menos consegui ver a bondade, ainda inexistente, do próximo minuto, do próximo dia e do próximo ano. E foi assim que naquela noite sonhei com todos os bebês juntos e não foi um pesadelo. Acordei novo.

20 de fev. de 2008

MISTÉRIOS


"Se o cérebro humano fosse tão simples que pudéssemos entendê-lo,
seríamos tão simples que não o entenderíamos."

Lyall Watson

O telefone toca e a menina acorda assustada. Número não identificado e ela atende. Não ouve nada, apenas longos suspiros e um choro baixo. Logo a ligação cai. Ela só pensa no pior.
Pouco depois o telefone novamente toca. O mesmo choro, agora sem os suspiros. O pânico lhe invade e nada mais acontece. A ligação dura menos.
Ela se levanta, olha pela janela de seu décimo andar e por alguns momentos sente-se segura. Verifica todos os trincos das portas. Pelo olho mágico vê apenas um corredor deserto.
Ainda resta muito tempo para dormir e a menina, agora mais calma, deita-se em sua cama. O sono vem fácil. No aconchego de seus alvos lençóis, adormece mais uma vez. E numa trilha estreita, agora a menina se vê. Corre desesperada, sem saber de que e pra onde. Segundos depois ela cai. Acorda em queda livre e ouve batidas surdas em sua porta. Ela se levanta e no breu se dirige à porta. Seu coração lhe sai pela boca. Mais uma vez pelo olho mágico avista um corredor vazio. Maldito seja quem a acordou pela segunda vez.
Segundos depois lhe batem à porta outra vez. Nada pelo olho mágico. Apenas um bilhete na soleira da porta. Uma gota borrava a escrita. "Espere mais um pouco, durma ainda", dizia o bilhete. Sem entender, ela o relê mil vezes, vira de ponta cabeça, coloca o papel contra a luz e não descobre a mensagem oculta.
Depois de se acalmar, ela volta pro seu quarto. Desiste de pensar em porquês e dorme. Sonha que está presa numa cadeira, imóvel. Sente um medo terrível e uma vontade imensa de que tudo acabe rápido. O sonho acaba em reticências.
A menina acorda com o despertador que toca, não se lembra do que sonhou. Lembrou-se do longo dia que havia pela frente e por alguns momentos sentiu o peso da obrigação. Ao sair, havia outro bilhete sob a porta, agora com cheiro de perfume. "Agora sim, pode ir e que seu dia seja bom", ela leu. Sente algo quente no peito. Ela então dobra e guarda o bilhete no bolso.
Um tempo depois, ela retira o bilhete de seu bolso, relê, e uma lágrima furtiva borra a escrita. A lágrima era sua. Tentou controlar suas emoções e como era de se esperar, não conseguiu. Temeu que outros vissem seu choro. Cabisbaixa e com um sorriso na alma, a menina seguiu seu caminho.
E como lhe foi desejado, não se sabe por quem, a menina teve um dia bom e com bocejos.

15 de fev. de 2008

CRÔNICA DE UM DIA QUENTE

FOTO: J.Machado -Sombra e Água fresca - 2008

Quente, logo cedo um sol de meio dia. Depois de um longo banho, saio de casa já suando em bicas. No trânsito, um monte de antas, em suas carroças possantes com volantes de testosterona, insultam todas as gerações de quem estava perto. Duas senhoras gazelas discutiam enaltecidamente quem era a mais mundana. E um monte de porcos, com os buços lotados de gotas de suor, aplaudia.
De longe e meio que impotente, a multidão assistia ao espetáculo de um assalto. A pobre menina de bolsa rosa ficara sem sua sacola de supermercado e ainda havia levado uma vassourada. Não sei se xingava os pivetes ou os inertes, a mim talvez.
E o calor de uns quarenta graus tornava tudo aquilo mais bizarro.
Noutro canto, outro circo se armava. O paraplégico em sua cadeira de rodas pedia o motorista do ônibus para encostar mais perto da calçada. Como isso não foi possível, o que o motorista ouviu? "Seu babaca, mal educado, vá pra m...". E toda a beleza da desgraça humana mais uma vez se escancarava. Dante iria amar isso aqui.
Em meio a toda a balbúrdia, uma distinta senhora pseudo-européia, loura oxigenada e barata, discutia com o distinto rapaz sobre em qual lugar deveria guardar seus papéis picados. Se era na lixeira, como o rapaz pedia, ou no meio da rua, como a ignóbil criatura já o fazia. Há uma população de vermes soltos.
E de repente, ao abrir o armário, seu doutor vê que uma cópia de um importante documento havia sido usada como rascunho para lista de supermercado. Ele só não xingou a digníssima mãe do autor da façanha e não lhe deu um soco nas fuças, pois não sabia quem era. Acho que ainda o procura com uma foice nas mãos.
O velho tablóide tupiniquim de quinta, comprado por todos a vinte e cinco centavos, noticia violência, esporte e mulher pelada. Além do mais, oferece a quem comprar um exemplar, um carrinho de brinquedo. E tem um monte de gente gastando dois reais numa pilha de jornal barato.
O mauricinho na porta do boteco copo-imundo abre o capô de seu carro e um som horrendo sai da caixa, um tal funk com cinco velocidades. Do lado, um monte de garotas fina-flor, com pizzas axilares e grandes cintos, mostra sua coreografia erótica levanta defunto pra um bando de bode velho babão. Tragicomédia cotidiana.
Está difícil viver, é só sair de casa e todo o caos me esmaga. As boas cenas de um dia são raras e ainda assim pouco memoráveis. Fico feliz por voltar à minha casa, meu mundinho perfeito paralelo. Nele ninguém xinga, nele há um cão imaginário que me faz companhia. Nele só ouço palavras doces.
Mas pode deixar, na próxima, mesmo neste calor, falarei de dias melhores. O trânsito irá desaparecer, a mocinha de bolsa rosa terá outra sacola de supermercado, a loura será mais educada e a música será melhor. Eu ainda cumprirei esta promessa. Sente, mude de posição periodicamente, previna a dor nos ísquios. A espera pode ser longa.

12 de fev. de 2008

AINDA SONHO

FOTO J.Machado - Iluminação - 2008

Hoje pedi a Deus pra me iluminar, rezei forte, debulhei várias contas. Horas a fio a beira do leito, pensamentos distantes e teclas repetidas. Desejei britas quentes sob meus joelhos. Pedi dádivas pra outros, talvez pra que não ficasse tão óbvio o meu egoísmo.
Escrevi repentinamente.
Tinha pânico de novas feridas. Pedi pra dormir, pedi sonhos. Pedi um tempo fresco e água gelada. Pedi que o canto fúnebre cedesse seu lugar a uma melodia harmonicamente adocicada e de sabor prolongado.
Num dos mistérios desejei que momentos bons se eternizassem. Pedi gosto. Pedi só que o relógio parasse. Pedi que o ano novo se acabasse. Queria um rumo, uma raiz e um cão amigo. Nada de novas falsas impressões e doces inúteis melancolias.
Não podia mais me cansar. Cansei de por no papel os dias de sofrimento e aceitar imposições com sorrisos hipócritas. Tinha que esperar a escravidão acabar pra dar um fim a todos os momentos de brutalidade e incoerência. Arrependi-me de apontar o dedo e espalhar o veneno da minha raiva em gotas de saliva.
Pedi educação e ordem. Pedi que falasse mais baixo e que sentisse um mínimo de orgulho. Só queria novas boas impressões sobre velhos conceitos banais. Só desejei que todos soubessem aonde estão as lixeiras.
Sim, sim, pedi, desejei, sonhei.
Dormi e pedi, sim, para não sentir mais dor.

3 de fev. de 2008

PRISÃO DOMICILIAR

FOTO: J.Machado - Prisão Domiciliar - 2008

Eu tenho a chave de casa e não consigo sair. O mundo lá fora tirou férias e todas as portas e janelas estão fechadas. Por onde olho e sob qualquer ângulo não vejo vivalma. As árvores se refrescam livremente ao vento. E o vento, por sua vez, segue sem impecílios.
Sem fumaça, sem carros, onde estarão todos? Que lugar no mundo comportaria a população fugitiva de uma metrópole inteira?
Nesta época alguns libertam os demônios e se entregam a bacanais de pão e circo, outros dormem e fazem planos. O restante apenas some.
Passei por vários quarteirões e não saí da calçada, senão nos momentos em que atravessei a rua. Fui a lugares antes badalados e entregues a moscas estavam. Fui obrigado a voltar de mãos abanando e os pés sujos de lama. Dada a fome e o avançar da hora, fui obrigado a inventar uma gororoba tupiniquim de quinta. Não que eu cozinhe mal, não é isso. É desalentador cozinhar pra um só, a pressa acaba estragando o tão sonhado banquete.
O silêncio é bom, em excesso dá náuseas. A solidão é necessária e faz parte do auto-conhecimento, mas quando sobra fica entediante. O que consola é que isso acontece apenas uma vez no ano. É suficiente. Nos outros apenas descansamos.
E o mais intrigante é que quando o lugar volta a ser novamente habitado, falta me faz o deserto de agora e o silêncio. O ser humano irrita pela sua inconstância e a eterna insatisfação.
E agora dentro de casa vejo sol e chuva, vejo gotas no vidro da janela, vejo o amanhã, vejo a porta fechada. Sinto o cheiro de flor e o de terra molhada. Pelos corredores e quartos revivo cenas esquecidas.
Não vejo nada em quadrados.
Em minha prisão tenho quatro chaves da porta e não consigo sair.

1 de fev. de 2008

CASINHAS COLORIDAS

FOTO: J.Machado - Casinhas Coloridas - 2006

Há quinze anos minha vida ficava mais colorida.
Chegou linda, ainda é e com traços perfeitos.
A terceira mais esperada, com certeza a mais.
Tão protegida e tão independente.
...
Cresceu rápido, esticou e já nos olhamos nos olhos.
É tão linda que não consigo conter as palavras.
Já é hoje, o primeiro grande marco de sua vida.
Estou ao seu lado, dentro do seu coração, na sua casinha.
...
Ouço de perto sua voz e seus sorrisos fáceis.
Ainda mordo seu nariz de batatinha.
E lhe abraço forte, como era fácil lhe carregar.
Hoje eu nem sei, faz um tempão, que saudade.
...
Vejo rosa e lembro de você, o belo lhe lembra.
Roupa rosa, sapato rosa, casinhas rosas.
Lembro dos caracóis de seus cabelos.
Transformaram-se em longas madeixas lisas.
...
Hoje é de longe que lhe desejo tudo.
O melhor e o mais puro que existe.
O que prometo sempre cumpro, você sabe bem.
Bastam pitadas de paciência e casinhas coloridas.
...
É assim, se não entendeu é só perguntar.
E este é mais um seu, eu lhe avisei.
A única com tamanho privilégio.
Com os meus parabéns e um imenso eu te amo.